consulta com Betty Milan

O BRINCAR É UM RECURSO CIVILIZATÓRIO

Aproveito sua coluna para pedir que você escreva sobre a mentira na política nacional e no cotidiano brasileiro. Sobre a relação disso com a ética. Sobre a posição do indivíduo na sua busca de identificação com os políticos. Gostaria ainda de saber como entra o Macunaíma nessa história.

 

O brincar do Macunaíma não tem nada a ver com o sacanear dos políticos. Macunaíma, o herói sem caráter, é inseparável de Ci, “a companheira para sempre inesquecível”. O companheirismo entre ele e a sua amada é um eterno brincar —“os dois brincavam que mais brincavam num deboche de amor prodigioso”. Trata-se de um brincar que se renova — “despertados inteiramente pelo gozo, inventavam artes novas de brincar”.

O brincar é a vocação de Macunaíma e da nossa cultura popular, à qual Joãozinho Trinta deu o nome de “cultura do brincar”, explicando que se trata da cultura fluindo através da brincadeira, insistindo no impossível e desafiando a morte.

O que sustenta o brincar é a fantasia, à qual o folião — como a criança — se entrega sem culpa, deixando-se governar pelo princípio do prazer. Por isso, nós todos nos reconhecemos no Carnaval, que rememora o passado e reinventa a nossa identidade. Rememora carnavalizando a história e oferecendo continuamente um Brasil com o qual nós nos identificamos.

Nada a ver com o universo da política, de que o Carnaval faz a sátira. Assim, por exemplo, no samba de Roberto Martins Frazão: “Lá vem o cordão dos puxa-sacos / Dando vivas aos seus maiorais / Quem está na frente é passado pra trás… / Vossa Excelência, Vossa Eminência / Quanta reverência / Nos cordões eleitorais / Mas se o doutor cai do galho e vai ao chão / A turma toda ‘evolui’ de opinião…”

A cultura do brincar denuncia o oportunismo, porque, para ela, a política não deveria estar dissociada da ética. Na verdade, ela quer a “polética”, e é por isso mesmo que, nos tempos da escola de samba Beija-Flor, Joãozinho Trinta se valeu da ética quesustenta a produção do Carnaval para constituir mutirões e transformar Nilópolis. A solidariedade que imperava no barracão e a disciplina permitiram a reconstrução parcial da cidade e a reorganização da vida. Contra o subdesenvolvimento, o carnavalesco pôs em marcha as suas alas, as legiões da alegria que, segundo ele, “não são uma ilusão, mas um recurso”.

O brincar, contrariamente ao sacanear, é um recurso civilizatório. Vale-se do faz de conta, e não da mentira. O político que sacaneia, usando a lei em benefício próprio, desmente a confiança nele depositada. Não passa de um mentiroso e é claro que ninguém pode se identificar com ele. Como representa o país, este fica desacreditado. O malefício causado pelo político corrupto é tamanho que ele deve ser duramente punido. A consolidação da democracia requer isso.

 

Publicado em Quem ama escuta