consulta com Betty Milan

FICA BEM QUEM ACEITA QUE O TEMPO PASSA

Numa das suas colunas, você diz ao consulente que ele corre o risco de envelhecer cedo e mal. Espero que você não tenha uma ideia preconcebida em relação à velhice, que tem seus prós e seus contras, como qualquer fase da vida. O maior dos contras é uma saúde frágil.

Estou sob a influência da minha última leitura, Saber envelhecer, de Cícero, e concordo em boa parte com os argumentos dele a favor da velhice. Melhor envelhecer do que viver uma adolescência prolongada, pois sofrimento maior do que na adolescência não há.

Sou leitor assíduo dos seus artigos e admiro muito o seu trabalho.

 

Bom ser admirada por alguém que lê Cícero, a quem nós devemos a noção moderna de humanismo. Cícero considerava que, devendo ser um educador, o político precisava receber uma formação universal. Com ele, humanitas, que significava “o amor do humano”, passou a significar cultura.

Além de culto, o político para Cícero só devia querer o otium, que significa repouso, ausência de guerras e de lutas. Devia ainda recusar o poder excessivo e viver no respeito dos direitos de todos. São maneiras de ser e de se comportar que requerem a sabedoria, rara na juventude e mais comum na idade avançada. Normal que o filósofo fosse favorável à velhice.

Sou favorável aos mesmos valores, mas não a esta ou aquela idade. Há tantas maneiras de ser adolescente ou de envelhecer! E, a bem da verdade, não sei o que envelhecer é. No primeiro sentido do dicionário, significa se tornar velho e isso não me leva a nada. No segundo sentido, é tomar aspecto de velho. Olho a foto de Lacan que está na parede e vejo os cabelos brancos. Pelos cabelos, o aspecto é de um homem idoso, mas pela intensidade do olhar, a juventude é inegável.

Ficou bem até quase o fim. Como Picasso. Duas vezes por mês, Lacan se apresentava no seu seminário com ideias novas e, para isso, muito se empenhava. Foi grande por nunca ter parado de inovar e transmitir o seu saber, enveredando por caminhos novos, vencendo continuamente a repetição. O que importa é isso.

Fica idoso e bem quem se dá ao outro e aceita o tempo que passa, porque se transforma com ele. Um dos melhores exemplos é Joãozinho Trinta. Por reinventar todo ano o desfile, ele foi durante décadas um dos nossos maiores carnavalescos. Depois, quando ficou doente, voltou à Marquês de Sapucaí numa cadeira de rodas, introduzindo no desfile a ala dos paraplégicos e ensinando assim, através da cultura do brincar, a solidariedade humana. Não se deixou vencer pela doença e compareceu para dizer com a sua surpreendente presença: “Eu continuo com vocês”.

Cícero, que teria encontrado no Brasil raros políticos dignos do humanismo por ele preconizado, teria gostado de conhecer o carnavalesco, um dos maiores humanistas de quem já se ouviu falar.

 

Publicado em Quem ama escuta