consulta com Betty Milan

A MENTIRA É UM ATOLEIRO

Há tempo eu quero escrever. Reluto, de vergonha. Tenho 30 anos de idade e acho que sou mitômano.

Minha vida é uma grande e aterradora mentira. Não sei o que houve, mas, desde os 20 anos, fujo da realidade, mentindo sobre mim e sobre tudo o que me cerca. São mentiras convincentes, que as pessoas levam anos para descobrir.

A vontade de ser eu mesmo é imensa —porém como assumir que não sou quem os outros pensam que sou? Sofro com isso e as pessoas que se aproximaram de mim também sofreram. Foram enganadas. Gostaram de alguém que não existia e queria ser visto como aparentava ser, e não como era. Acontece que eu agora não sei mais quem sou.

Não quero mais a vida como ela está. Não quero mais perder pessoas especiais. Preciso de laços duradouros, de confiança, de respeito. Qual o caminho a seguir?

 

Na linguagem corrente, nós frequentemente dizemos: “Isso é um mito”, para desqualificar uma ideia. Mito, aí, é sinônimo de mentira. Mas a palavra mitoé originária do grego mythos, que significa lenda. E, além de ser uma vocação de todos os povos, a lenda deu origem aos grandes tesouros da civilização, a exemplo da mitologia grega ou hindu.

Nós só somos educados para dizer a verdade por dois motivos. Por um lado, porque tendemos a nos valer da mentira para realizar o desejo e escapar ao castigo. Por outro, simplesmente porque gostamos de inventar. Os artistas e os escritores são os que, não conseguindo abrir mão desse gosto da infância, exercitam-se nele a vida inteira, fazendo arte ou escrevendo. Agora, eles sabem distinguir o imaginário do real. Um bom exemplo é Autopsicografiade Fernando Pessoa, que diz: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”.

O mitômano, como os artistas e os escritores, precisa inventar. Só que ele apresenta a sua invenção como um dado real e faz isso por uma razão inconsciente, que lhe escapa. Inventa compulsivamente. Acaba não sabendo distinguir a fantasia da realidade e se pergunta: “Quem sou?”.

Hoje, você não quer mais se repetir nessa conduta, para inspirar respeito e não perder pessoas. Procure encontrar a razão que te levou a fugir continuamente da realidade. Porque a gente não esquece por fugir dela. Todo homem tem a sua hora e vez, que é a hora da sua verdade. Insisto na palavra sua, pois, como diz a psicanalista Yvete Villalba, “a verdade que está ao alcance do sujeito é a que diz respeito ao seu próprio engano”.

Não perca tempo. Procure logo quem saiba te escutar. Até que você encontre uma via nova e possa sair do atoleiro onde está. Boa sorte.

 

 

Publicado em Quem ama escuta