consulta com Betty Milan

CADA CRIME É UM

O ex-namorado de minha mãe foi um pai para mim. Quando fiquei cega, vendeu bens e deixou de dormir para cuidar dos meus olhos. Foi graças a ele que eu fiz um transplante e voltei a enxergar. Foi por seguir os seus conselhos que estou terminando a faculdade. Quando minha mãe e ele se separaram, há três anos, eu me afastei dele. A minha família é ela e o laço de sangue é forte. Mas eu me sinto culpada por ter abandonado uma pessoa que fez tanto por mim.

Depois da separação, ele matou um homem. Está preso há alguns meses e eu não consegui vê-lo no presídio. Não paro de pensar no seu sofrimento. Me digo que ele talvez não tivesse matado se eu estivesse por perto e que a culpa o corrói. Desde que descobri o crime e a prisão do meu “pai”, tenho pesadelos. Vejo o homem ensanguentado e o meu “pai” sorrindo para mim como antigamente. Acordada, sonho com o inferno que ele está vivendo. Ele não sai do meu pensamento e isso está me destruindo.

 

Você precisa cair na real. Dormindo, você tem pesadelos. Acordada, sonha. Ou seja, está vivendo num mundo imaginário. Ainda que este mundo te faça sofrer, você está nele porque há nisso um grande gozo. O chamado “gozo masoquista”, que é um capítulo importante da literatura psicanalítica e alimenta continuamente a literatura. Um bom exemplo é O idiota, de Dostoiévski. Trata-se nele de um triângulo à moda russa. Os três grandes personagens são masoquistas e têm a mesma sorte infeliz. Nastássia, Rogojin e o príncipe.

Para sair da posição sofrida em que você está, seria importante encontrar o seu “pai” — e você tem todo o direito a isso, porque foi salva por ele. Procure um advogado que te faça entrar na cadeia e vá escutar o que o homem tem a dizer sobre o próprio drama. Com isso, poderá entender por que um homem que foi tão bom se entregou à barbárie e praticou um crime. Vai cair na real e ajudar o “pai”, se for o caso. Se não for, estará se ajudando. Acho que não há outra saída, tendo em vista os seus sentimentos.

Quanto à sua culpa, também ela tem relação com o masoquismo. Óbvio que ninguém mata ou deixa de matar porque alguém está ou não “ por perto”. Há mais de uma razão para o crime e cada crime é um. Vá saber o que aconteceu. O seu “pai” tanto pode ser responsável por um ato nefasto quanto pode ser inocente. Se, por exemplo, a razão do crime for inconsciente. Nesse caso, a defesa não é a mesma.

Há crimes praticados na maior inocência. Me lembro da história do delegado de polícia que mandou soltar os presos e no dia seguinte mandou prender o carcereiro. Abriu as portas da cadeia porque estava num “estado segundo”, estado em que a consciência fica diminuída. O caso do delegado é de doença e precisa ser tratado. Quem garante que o do seu “pai” não seja?

 

Publicado em Quem ama escuta